Alex Castro's Blog
September 23, 2020
Dez romances preferidos
Perguntaram a vários escritores. Aqui vão os meus.
Todo grande romance é cósmico: ele parte da especificidade das situações cotidianas e, a partir delas, abraça a totalidade da existência.
Primeiro, cinco romances simplesmente perfeitos:
Moby Dick (EUA, 1851), de Herman Melville
Miseráveis (França, 1862), de Victor Hugo
Guerra e paz (Rússia, 1867), de Liev Tolstoi
Grande sertão: veredas (Brasil, 1956), de João Guimarães Rosa
Cem anos de solidão (Colômbia, 1967), de Gabriel Garcia Márquez
E outros cinco quase tão perfeitos quanto:
Manuscrito encontrado em Saragoça (Polônia, 1815), de Jan Potocki
Corcunda de Notre-Dame (França, 1831), de Victor Hugo
Cecília Valdés (Cuba, 1882), de Cirilo Villaverde
Hora da estrela (Brasil, 1977), de Clarice Lispector
Partículas elementares (França, 1999), de Michel Houellebecq
Quais são os seus?
* * *
A lista não é dos “melhores romances de todos os tempos”, o que exigiria uma objetividade que não tenho, mas sim dos meus “romances preferidos”, um recorte necessariamente subjetivo e que diz muito sobre minha vida, minhas premissas, minhas prioridades.
Então, por exemplo, como estudei escravidão por toda a minha vida e é um dos temas que mais me desperta o interesse, a lista inclui o melhor romance sobre escravidão que já encontrei, o cubano Cecília Valdés, o que reflete mais a minha história de vida e minhas prioridades do que a qualidade do romance em si — apesar dele ser, naturalmente, maravilhoso.
Meu autor preferido não entrou, pois nunca escreveu romances (Tchecov), assim como não entraram vários outros que estão entre os mais importantes da minha vida: Ésquilo, Euripides, Lucrécio, Virgílio, Agostinho, Spenser, Vicente, Mendes Pinto, Shakespeare, João da Cruz, Milton, Hoffman, Byron, Shelley, Gogol, Hernandez, Maupassant, Kipling, Zweig, Gorki, Borges, Weil, Freyre, Singer, Szymborska.
Abaixo, as menções honrosas. Entre elas, doze autoras mulheres.
* * *
Menções honrosas
Alemão
Processo, Castelo, Kafka;
Breve romance de sonho, Schnitzler;
Coreano
Vegetariana, Kang;
Espanhol
Enteado, Saer;
Guerra do fim do mundo, Tia Julia e o escrevinhador, Filhotes, Vargas Llosa;
Sobre heróis e tumbas, Sábato;
Colmeia, Cela;
Homem que amava cachorros, Romance da minha vida, Padura;
Fortunata e Jacinta, Misericordia, Galdós
Francês
Submissão, Houellebecq;
Princesa de Cleves, La Fayette;
Amante, Dor, Duras;
Canção de ninar, Slimani;
Inglês
Lord Jim, Nostromo, Coração das trevas, Conrad;
Morro dos ventos uivantes, Bronte;
Imperfectionists, Rachman;
Mrs Dalloway, Woolf;
Grande Gatsby, Suave é a noite, Fitzgerald;
Amada, Morrison;
Benito Cereno, Billy Budd, Bartleby, Melville;
Frankenstein, Shelley;
Cabeça decepada, Murdoch;
Húngaro
Porta, Szabo.
Japonês
Retrato de Shunkin, Cortador de Juncos, Tanizaki
Italiano
Tetralogia Napolitana, Ferrante;
Leopardo, Lampedusa;
Português
Água viva, Paixão segundo G.H., Lispector;
Manual dos inquisidores, Naus, Antunes;
Dom Casmurro, Mão e a luva, Machado;
Romance da Pedra do Reino, Suassuna;
Russo
Morte de Ivan Ilich, Tolstoi;
Jogador, Dostoievski;
Primeiro amor, Turgeniev;
Tcheco
Insustentável leveza do ser, Brincadeira, Kundera.
* * *
Lista em constante movimento. Atualizada pela última vez no dia 23 de setembro de 2020.
Todo grande romance é cósmico: ele parte da especificidade das situações cotidianas e, a partir delas, abraça a totalidade da existência.
Primeiro, cinco romances simplesmente perfeitos:
Moby Dick (EUA, 1851), de Herman Melville
Miseráveis (França, 1862), de Victor Hugo
Guerra e paz (Rússia, 1867), de Liev Tolstoi
Grande sertão: veredas (Brasil, 1956), de João Guimarães Rosa
Cem anos de solidão (Colômbia, 1967), de Gabriel Garcia Márquez
E outros cinco quase tão perfeitos quanto:
Manuscrito encontrado em Saragoça (Polônia, 1815), de Jan Potocki
Corcunda de Notre-Dame (França, 1831), de Victor Hugo
Cecília Valdés (Cuba, 1882), de Cirilo Villaverde
Hora da estrela (Brasil, 1977), de Clarice Lispector
Partículas elementares (França, 1999), de Michel Houellebecq
Quais são os seus?
* * *
A lista não é dos “melhores romances de todos os tempos”, o que exigiria uma objetividade que não tenho, mas sim dos meus “romances preferidos”, um recorte necessariamente subjetivo e que diz muito sobre minha vida, minhas premissas, minhas prioridades.
Então, por exemplo, como estudei escravidão por toda a minha vida e é um dos temas que mais me desperta o interesse, a lista inclui o melhor romance sobre escravidão que já encontrei, o cubano Cecília Valdés, o que reflete mais a minha história de vida e minhas prioridades do que a qualidade do romance em si — apesar dele ser, naturalmente, maravilhoso.
Meu autor preferido não entrou, pois nunca escreveu romances (Tchecov), assim como não entraram vários outros que estão entre os mais importantes da minha vida: Ésquilo, Euripides, Lucrécio, Virgílio, Agostinho, Spenser, Vicente, Mendes Pinto, Shakespeare, João da Cruz, Milton, Hoffman, Byron, Shelley, Gogol, Hernandez, Maupassant, Kipling, Zweig, Gorki, Borges, Weil, Freyre, Singer, Szymborska.
Abaixo, as menções honrosas. Entre elas, doze autoras mulheres.
* * *
Menções honrosas
Alemão
Processo, Castelo, Kafka;
Breve romance de sonho, Schnitzler;
Coreano
Vegetariana, Kang;
Espanhol
Enteado, Saer;
Guerra do fim do mundo, Tia Julia e o escrevinhador, Filhotes, Vargas Llosa;
Sobre heróis e tumbas, Sábato;
Colmeia, Cela;
Homem que amava cachorros, Romance da minha vida, Padura;
Fortunata e Jacinta, Misericordia, Galdós
Francês
Submissão, Houellebecq;
Princesa de Cleves, La Fayette;
Amante, Dor, Duras;
Canção de ninar, Slimani;
Inglês
Lord Jim, Nostromo, Coração das trevas, Conrad;
Morro dos ventos uivantes, Bronte;
Imperfectionists, Rachman;
Mrs Dalloway, Woolf;
Grande Gatsby, Suave é a noite, Fitzgerald;
Amada, Morrison;
Benito Cereno, Billy Budd, Bartleby, Melville;
Frankenstein, Shelley;
Cabeça decepada, Murdoch;
Húngaro
Porta, Szabo.
Japonês
Retrato de Shunkin, Cortador de Juncos, Tanizaki
Italiano
Tetralogia Napolitana, Ferrante;
Leopardo, Lampedusa;
Português
Água viva, Paixão segundo G.H., Lispector;
Manual dos inquisidores, Naus, Antunes;
Dom Casmurro, Mão e a luva, Machado;
Romance da Pedra do Reino, Suassuna;
Russo
Morte de Ivan Ilich, Tolstoi;
Jogador, Dostoievski;
Primeiro amor, Turgeniev;
Tcheco
Insustentável leveza do ser, Brincadeira, Kundera.
* * *
Lista em constante movimento. Atualizada pela última vez no dia 23 de setembro de 2020.
Published on September 23, 2020 17:49
June 3, 2020
Curso: Introdução à Grande Conversa
Introdução à Grande Conversa:
Um passeio pela história do ocidente através da literatura
Curso em 10 aulas, sempre às quintas, de 3 em 3 semanas, a partir de 2 de julho.
Vendas abertas:
alexcastro.com.br/curso
Um passeio pela história do ocidente através da literatura
Curso em 10 aulas, sempre às quintas, de 3 em 3 semanas, a partir de 2 de julho.
Vendas abertas:
alexcastro.com.br/curso
Published on June 03, 2020 18:28
April 10, 2020
Quem adivinhar sobre o que estou escrevendo ganha um doce :)
Leituras de abril de 2020, por enquanto:
1.59 Sambaqui, arqueologia do litoral brasileiro, de Madu Gaspar, 2000, português.
2.60 Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, 2000, português.
3.61 How Language Began, The Story of Humanity's Greatest Invention, de Daniel L. Everett, 2017, inglês.
4.62 Grooming, Gossip, and the Evolution of Language, de Robin I.M. Dunbar, 1996, inglês.
5.63 The language instinct, the new science of language and mind, de Steve Pinker, 1994, inglês.
6.64 1499, o Brasil antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes, 2017, português.
1.59 Sambaqui, arqueologia do litoral brasileiro, de Madu Gaspar, 2000, português.
2.60 Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, 2000, português.
3.61 How Language Began, The Story of Humanity's Greatest Invention, de Daniel L. Everett, 2017, inglês.
4.62 Grooming, Gossip, and the Evolution of Language, de Robin I.M. Dunbar, 1996, inglês.
5.63 The language instinct, the new science of language and mind, de Steve Pinker, 1994, inglês.
6.64 1499, o Brasil antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes, 2017, português.
Published on April 10, 2020 08:36
April 7, 2020
Tiny Beautiful Things: Advice on Love and Life from Dear Sugar
Esse livro mudou minha vida. Me ajudou a enxergar e ouvir mais, a aconselhar menos e melhor. Meu livro “Atenção.” de 2019, meus encontros “As Prisões”, começados em 2013, não teriam existido se eu não tivesse lido a Sugar em 2011. Serei sempre grato a ela.
Tiny Beautiful Things: Advice on Love and Life from Dear Sugar
Tiny Beautiful Things: Advice on Love and Life from Dear Sugar
Published on April 07, 2020 09:17
April 2, 2020
Últimas leituras, março de 2020
Algumas pessoas me perguntam "como decido quais livros vou ler" e respondo que um livro sempre pauta o seguinte. As leituras desse mês exemplificam bem esse processo.
No primeiro mês da peste, continuei mergulhado em poesia romântica inglesa.
Li uma recente "biografia" do grupo Shelleys, Keats, Hunt, Byron: escrita por uma professora universitária contemporânea, ela ajuda a percebermos as entrelinhas das vidas desses homens geniais e famosas, os estragos que causavam por onde passavam, as mulheres que usavam, consumiam, destruíam.
(Aproveitei para ler uma noveleta de Henry James, "The Aspern papers", na minha fila faz tempo, que, de certo modo, é sobre esse grupinho.)
De Shelley, reli uma biografia, li outra, li vários poemas longas e estou começando a sair da vibe, pois já li quase tudo que queria -- falta só "Laon & Cythna", que será um dos próximos.
Ao mesmo tempo, estou cada vez mais apaixonado por Byron: li diversos de seus poemas longos, uma biografia enorme, um volume de suas divertidíssimas cartas e estou lendo "Don Juan" desde fevereiro e continuarei em abril.
(Aproveitei a leitura do "Don Juan" de Byron para ler o "Don Juan", e outras quatro noveletas de Peter Handke, mas achei chato de doer.)
A leitura de "Cain", de Byron, acabou me levando, finalmente, a ler "Paraíso perdido", do Milton: o Satã de Byron foi claramente inspirado no de Milton, que eu já sabia ser um dos grandes personagens da literatura.
Estou completamente apaixonado, bestificado, impressionado com "Paraíso perdido", certamente uma das grandes obras da literatura mundial.
Também estou continuando minhas explorações de Shakesperare: li "Romeo e Julieta", e comecei um delicioso livro de Bloom sobre o bardo.
Por fim, quase acabei a coleção de presidentes da Folha, menos o último.... porque não saí mais de casa!!
Abaixo, as leituras de março de 2020:
1.33 Luiz Inácio Lula da Silva, um sindicalista no poder, de Lucas Ferraz, 2020, português.
2.34 Dilma Rousseff, a primeira presidente de República, de Lucas Ferraz, 2020, português.
3.35 The Faerie Queene, a reader's guide, de Elizabeth Heale, 1987, inglês.
4.36 The Aspern papers, por Henry James, 1888, inglês.
5.37 Complete stories, 1884-1891, de Henry James, inglês.
6.38 The Pelican Guide to English Literature: From Blake to Byron: Volume 5, de Boris Ford (ed), 1957-1982, inglês.
7.39 Young romantics, the tangled lives of English poetry's greatest generation, de Daisy Hay, 2010, inglês.
8.40 Percy Bysshe Shelley: Poet and Revolutionary (Revolutionary Lives), de Jacqueline Mulhallen, 2015, inglês.
9.41 Ariel, ou a vida de Shelley, de André Maurois, 1923, francês. [Trad: Manuel Bandeira.]
10.42 The witch of Atlas, de Percy Bysshe Shelley, 1820, inglês.
11.43 Epipsychidion, verses addressed to the noble and unfortunate Lady Emilia V—, now imprisoned in the convent of —., de Percy Bysshe Shelley, 1821, inglês.
12.44 Selected prose, de Lord Byron, c.1809-24, inglês.
13.45 Cain, a mystery, de Lord Byron, 1819, inglês.
14.46 The Giaour, a fragment of a Turkish tale, de Lord Byron, 1813, inglês.
15.47 The prisoner of Chillon, de Lord Byron, 1816, inglês.
16.48 The bride of Abydos, de Lord Byron, 1813, inglês.
17.49 Beppo, a Venetian story, de Lord Byron, 1817, inglês.
18.50 Don Juan, ou a fascinante vida de Lord Byron, de André Maurois, 1930. [Trad: Tereza Bulhões de Carvalho da Fonseca, 1966.]
19.51 Don Juan (narrado por ele mesmo), de Peter Handke, 2004, alemão. [Trad: Simone Homem de Mello, 2007.]
20.52 O medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke, 1972, alemão. [Trad: Zé Pedro Antunes, 1988.]
21.53 A mulher canhota, de Peter Handke, 1976, alemão. [Trad: Lya Luft, 1985.]
22.54 Bem-aventurada infelicidade, de Peter Handke, 1972, alemão. [Trad: Zé Pedro Antunes, 1988.]
23.55 Paradise lost, de John Milton, 1667, inglês.
24.56 Romeo and Juliet, de William Shakespeare, c.1600, inglês.
25.57 Shakespeare: the invention of the human, de Harold Bloom, 1999, inglês.
26.58 Genius, a mosaic of one hundred exemplary creative minds, por Harold Bloom, 2001, inglês.
Fiquem bem e saúde!
No primeiro mês da peste, continuei mergulhado em poesia romântica inglesa.
Li uma recente "biografia" do grupo Shelleys, Keats, Hunt, Byron: escrita por uma professora universitária contemporânea, ela ajuda a percebermos as entrelinhas das vidas desses homens geniais e famosas, os estragos que causavam por onde passavam, as mulheres que usavam, consumiam, destruíam.
(Aproveitei para ler uma noveleta de Henry James, "The Aspern papers", na minha fila faz tempo, que, de certo modo, é sobre esse grupinho.)
De Shelley, reli uma biografia, li outra, li vários poemas longas e estou começando a sair da vibe, pois já li quase tudo que queria -- falta só "Laon & Cythna", que será um dos próximos.
Ao mesmo tempo, estou cada vez mais apaixonado por Byron: li diversos de seus poemas longos, uma biografia enorme, um volume de suas divertidíssimas cartas e estou lendo "Don Juan" desde fevereiro e continuarei em abril.
(Aproveitei a leitura do "Don Juan" de Byron para ler o "Don Juan", e outras quatro noveletas de Peter Handke, mas achei chato de doer.)
A leitura de "Cain", de Byron, acabou me levando, finalmente, a ler "Paraíso perdido", do Milton: o Satã de Byron foi claramente inspirado no de Milton, que eu já sabia ser um dos grandes personagens da literatura.
Estou completamente apaixonado, bestificado, impressionado com "Paraíso perdido", certamente uma das grandes obras da literatura mundial.
Também estou continuando minhas explorações de Shakesperare: li "Romeo e Julieta", e comecei um delicioso livro de Bloom sobre o bardo.
Por fim, quase acabei a coleção de presidentes da Folha, menos o último.... porque não saí mais de casa!!
Abaixo, as leituras de março de 2020:
1.33 Luiz Inácio Lula da Silva, um sindicalista no poder, de Lucas Ferraz, 2020, português.
2.34 Dilma Rousseff, a primeira presidente de República, de Lucas Ferraz, 2020, português.
3.35 The Faerie Queene, a reader's guide, de Elizabeth Heale, 1987, inglês.
4.36 The Aspern papers, por Henry James, 1888, inglês.
5.37 Complete stories, 1884-1891, de Henry James, inglês.
6.38 The Pelican Guide to English Literature: From Blake to Byron: Volume 5, de Boris Ford (ed), 1957-1982, inglês.
7.39 Young romantics, the tangled lives of English poetry's greatest generation, de Daisy Hay, 2010, inglês.
8.40 Percy Bysshe Shelley: Poet and Revolutionary (Revolutionary Lives), de Jacqueline Mulhallen, 2015, inglês.
9.41 Ariel, ou a vida de Shelley, de André Maurois, 1923, francês. [Trad: Manuel Bandeira.]
10.42 The witch of Atlas, de Percy Bysshe Shelley, 1820, inglês.
11.43 Epipsychidion, verses addressed to the noble and unfortunate Lady Emilia V—, now imprisoned in the convent of —., de Percy Bysshe Shelley, 1821, inglês.
12.44 Selected prose, de Lord Byron, c.1809-24, inglês.
13.45 Cain, a mystery, de Lord Byron, 1819, inglês.
14.46 The Giaour, a fragment of a Turkish tale, de Lord Byron, 1813, inglês.
15.47 The prisoner of Chillon, de Lord Byron, 1816, inglês.
16.48 The bride of Abydos, de Lord Byron, 1813, inglês.
17.49 Beppo, a Venetian story, de Lord Byron, 1817, inglês.
18.50 Don Juan, ou a fascinante vida de Lord Byron, de André Maurois, 1930. [Trad: Tereza Bulhões de Carvalho da Fonseca, 1966.]
19.51 Don Juan (narrado por ele mesmo), de Peter Handke, 2004, alemão. [Trad: Simone Homem de Mello, 2007.]
20.52 O medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke, 1972, alemão. [Trad: Zé Pedro Antunes, 1988.]
21.53 A mulher canhota, de Peter Handke, 1976, alemão. [Trad: Lya Luft, 1985.]
22.54 Bem-aventurada infelicidade, de Peter Handke, 1972, alemão. [Trad: Zé Pedro Antunes, 1988.]
23.55 Paradise lost, de John Milton, 1667, inglês.
24.56 Romeo and Juliet, de William Shakespeare, c.1600, inglês.
25.57 Shakespeare: the invention of the human, de Harold Bloom, 1999, inglês.
26.58 Genius, a mosaic of one hundred exemplary creative minds, por Harold Bloom, 2001, inglês.
Fiquem bem e saúde!
Published on April 02, 2020 20:46
March 27, 2020
Romeu e Julieta, de Shakespeare
Romeu e Julieta, de William Shakespeare, talvez seja a melhor, a mais perfeita, a mais acessível tragédia do autor. Sob qualquer critério, um dos ápices da literatura ocidental. Para apreciá-la, porém, nosso maior inimigo é sua própria fama, seu lugar central na nossa cultura, e todas as noções pré-concebidas – “uma história água-com-açúcar”, “os protagonistas são bobinhos”, etc e etc – que trazemos para a experiência.
* * *
Como esquecer um nome?
Um dos principais obstáculos de Julieta para gozar seu grande amor é justamente o nome de seu amado, que pertence a uma família rival à sua:
“O que há num nome? O que chamamos rosa / Teria o mesmo cheiro com outro nome; / E assim Romeu, chamado de outra coisa / Continuaria sempre a ser perfeito, / Com outro nome. Mude-o, Romeu, / E, em troca dele, que não é você, / Fique comigo.” (II.ii, ou seja, segundo ato, segunda cena, na excelente tradução de Barbara Heliodora.)
Curiosamente, para nós pessoas leitoras do XXI, um dos principais obstáculos para gozar a peça também é o nome de Romeu.
Meu dicionário Houaiss registra “romeu” como “indivíduo muito enamorado”. (Aliás, “julieta” não é verbete.) Ou seja, a peça já faz tão parte da nossa psique amorosa, da nossa cultura literária, das nossas referências compartilhadas, que, a cada vez que algum personagem fala o nome de Romeu
Teobaldo: “Romeu, o amor que eu lhe dedico exige / Que lhe diga na cara que é um vilão.” (III.i)
é preciso des-ouvir “Romeu” como “indivíduo muito enamorado”, é preciso esquecer os 420 anos nos quais essa peça foi um elemento central da nossa cultura poética, e “ouvir” “Romeu” como se fosse um nome qualquer, um mero Arthur ou um simples Godofredo.
No conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, um literato francês embarca em seu projeto artístico mais ambicioso: reescrever o livro Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, mas no século XX. Não apenas copiando cada linha do original, o que seria fácil, mas ativamente esquecendo todos os séculos intermediários, desde a decadência do Império Espanhol, passando pela Revolução Francesa, até a Primeira Guerra Mundial. Desse modo, frases que seriam triviais saindo da pena de um escritor do século XVII se tornariam “assombrosas” assinadas por um intelectual do XX. (“Não há exercício intelectual que não seja, por fim, inútil”, sentencia o conto, disponível no livro Ficções e certamente um dos cinco melhores contos de todos os tempos.)
O crítico literário Harold Bloom fala em “angústia da influência” para descrever a luta interna que cada poeta precisa travar dentro de si para vencer seus mestres, seus ídolos, e encontrar sua própria voz. Talvez pudéssemos também falar em “angústia da referência”, para descrever aquelas obras que, mesmo a nós, simples pessoas leitoras, nos oprimem com o peso de sua ubiquidade cultural.
Afinal, como ler Romeu e Julieta (ou Dom Quixote) com a mente fresca e limpa? Como esquecer obras que nos formaram como pessoas leitoras? Como des-ler os livros que moldaram o nosso próprio processo de recepção literária?
* * *
Uma comédia com final de tragédia
Em sua edição das obras completas de Shakespeare, a editora Everyman’s Library coloca Romeu e Julieta (cujo título completo é The tragedy of Romeo and Juliet) em um dos volumes de comédia. O editor se justifica dizendo que a peça só não é uma comédia por cerca de um minuto, quando Romeu se mata logo antes de Julieta acordar. “Com certeza é uma tragédia”, admite ele, “mas segue toda a estrutura clássica de uma comédia”.
De fato, talvez seja exatamente esse o grande atrativo da peça: ter um set-up de comédia e um final de tragédia.
Hamlet, Othello, Macbeth, Lear são grandes obras em qualquer acepção do termo, mas, Deus do céu, ave-maria cruz-credo, especialmente as duas últimas, são pesadas, são dolorosas, são intensas. (Lear é a dor em forma de texto.)
Já Romeu e Julieta é leve e divertida, mas também agitada e envolvente, tem a Ama e tem Mercúcio, toda rimada e cheia de trocadilhos – o que só faz com que a porrada, quando venha, mesmo tendo sido anunciada desde o começo, seja ainda mais dolorosa, ainda mais injusta, ainda mais cruel.
Por um lado, Romeu e Julieta não tem nenhum vilão ultra-malvado, torcendo os próprios bigodes e narrando as próprias vilanias, como Iago, Macbeth, Edmund. Sim, são personagens maravilhosos e divertidos, mas quase Deus ex machinas ao contrário. Quem resistiria à tamanha malvadeza concentrada? São quase a garantia do final infeliz. E podemos dormir tranquilas: qual é a chance de nos depararmos com um Iago em nossas vidas?
Por outro lado, o fato de não ter vilões (pobre Teobaldo é só um menino esquentadinho), me parece ainda mais apavorante. O que causa a tragédia dos jovens amantes, nascidos sob má estrela, é tudo aquilo que também causa tragédias em nossas vidas: um amigo encrenqueiro pra cá, uma família autoritária pra lá, adolescentes cheios de hormônios e inconsequentes aqui, um plano meio idiota e excessivamente otimista acolá. O trágico em Romeu e Julieta é justamente saber que tudo não deu certo por muito, muito pouco.
Como diz o Príncipe, em uma das últimas falas:
“Todos são punidos.”
E, no filme de Baz Luhrman, para maior efeito, ainda repete – sempre com ênfase no “e” normalmente não pronunciado:
“All are punishèd.”
Ou, no que seria minha frase preferida da peça se não tivesse sido tirada verbatim de Troilo e Criseida, de Chaucer:
“These violent delights have violent ends.” (“Esses prazeres violentos têm finais violentos”)
(Na série Westworld, é essa citação que ativa a programação assassina da anfitriã Dolores.)
* * *
A peste em Romeu e Julieta
O dia que dediquei para ler e assistir diferentes versões de Romeu e Julieta foi quinta, 26 de março de 2020. Não é uma data qualquer, mas o 15º dia de meu auto-isolamento social causado pelo coronavírus; que eu, enquanto escrevo e vocês, enquanto leem, não sabemos nem quanto vai durar, nem se vamos sobreviver.
Shakespeare, que morreu há 400 anos e teve uma vida tão diferente da nossa, tinha bastante familiaridade com nosso dilema. A peste atingiu sua vila natal poucos meses depois de seu nascimento, em 1564; teoricamente ele e seus pais desenvolveram algum tipo de imunidade. Ao longo de sua vida adulta, quando trabalhava como ator e dramaturgo, ou como dono de sua própria companhia teatral, novas erupções da peste continuavam forçando os teatros a permanecerem fechados por meses ou anos, época em que aproveitava para escrever ativamente. Boa parte de suas maiores obras provavelmente foram escritas em períodos de isolamento social como o que estamos vivendo agora. (Pense no que você está fazendo em seu isolamento.)
Apesar de ser um presença forte em sua vida (como está sendo na nossa!), a peste não figura com muita frequência em sua obra. Curiosamente, a peça em que talvez tenha mais importância no enredo seja justamente Romeu e Julieta. Afinal, Romeu apenas se mata diante de Julieta por não saber que ela estava somente dormindo. E por que ele não recebeu essa informação?
No caminho entre Verona (onde se passa a história) e Mântua (onde Romeu estava escondido), Frei João visita um irmão encarregado de cuidar de pessoas doentes. Enquanto estava na casa, as autoridades sanitárias, considerando que tinham sido expostos à peste, selam as portas, prendendo lá dentro não só Frei João mas também a mensagem que teria salvo as vidas de Romeu, Julieta e também Páris (V.ii).
Tudo por causa da quarentena. Tudo por causa da peste.
E eu penso: quantos casos de amor, embrionários, quase começando, não foram abortados por nosso atual isolamento? Quantas coisas não deixarão de acontecer?
* * *
Shakespeare: ler ou assistir?
Existe toda uma controvérsia: é melhor ler ou assistir Shakespeare?
Por um lado, as peças foram escritas para ser assistidas. Não são textos para ser lidos silenciosamente, na solidão de casa: como todo texto teatral, são uma parte pequena de uma experiência cultural maior, coletiva, cinética.
Por outro, puristas defendem que as adaptações são em geral tão, mas tão ruins que estragam o texto, e que é melhor ler por conta própria do que se deixar contaminar pela visão deturpada de um diretor que pode ter des-lido a peça.
Ambos têm alguma razão.
Meu método pessoal é escutar um bom áudiolivro enquanto acompanho o texto escrito. O inglês de Shakespeare, infelizmente, está tão distante de nós que, às vezes, mesmo para falantes nativos, é difícil extrair o significado do texto. Um bom áudiolivro, com atores competentes colocando as pausas e as ênfases nos lugares certos, faz o sentido emergir de trechos que eram obscuros lidos silenciosamente. (Recomendo a coleção Complete Arkangel Shakespeare, uma série de áudiolivros de todas as peças de Shakespeare, com texto integral e grande elenco.)
Depois, tento assistir uma ou outra boa adaptação audiovisual, para ver o texto ganhando vida silenciosamente. (A série BBC Television Shakespeare, exibida entre 1978 e 1985, tem momentos desiguais, mas a vantagem é trazer o texto sempre integral.)
* * *
Duelo de simpatias: Teobaldo vs Mercúcio
A melhor coisa de assistir adaptações depois de ler as peças é registrar as principais mudanças e refletir sobre elas.
Agora, por exemplo, assisti à adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (dirigida por Alvin Rakoff em 1978) e também reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.
As diferenças que mais me chamaram atenção entre essas adaptações e o texto original tiveram a ver com um certo grau de manipulação das simpatias do público para esse ou aquele personagem. Comecemos pela BBC.
O momento crucial da peça, exatamente na metade, seu ponto de inflexão, o momento em que tudo começa a dar errado e não para mais, é a briga que termina com Teobaldo e Mercúcio mortos (III.i).
No texto, a sequência acontece assim: Mercúcio está conversando com amigos; Teobaldo chega e pergunta por Romeu; Romeu aparece; Teobaldo agradece, vai falar com Romeu, puxa briga, saca a espada; Romeu se recusa a brigar, mas Mercúcio (seu melhor amigo) compra a briga; Teobaldo, de espada em riste, se recusa a brigar com Mercúcio, pois sua briga é com Romeu; Mercúcio força a briga e saca a espada; Romeu tenta apartar; Teobaldo mata Mercúcio com um golpe por debaixo do braço de Romeu; Romeu mata Teobaldo.
Teobaldo claramente é um encrenqueiro. Na primeira cena, ele começa outra briga, onde afirma odiar a paz e todos os Montéquios. Mais tarde, na festa dos Capuletos, avista o penetra Romeu e teria criado uma confusão ali mesmo se não tivesse sido forçosamente impedido pelo anfitrião. Teobaldo é o mais perto de um vilão que a peça tem.
Já Mercúcio (o mais perto de um bobo que a peça tem e talvez seu personagem mais querido) também não é santo. Dá para argumentar que entra na briga para defender Romeu, mas não é verdade: Mercúcio escolhe forçar um confronto onde talvez não acontecesse nenhum. Teobaldo, que hesita uma única vez em aceitar (porque estava com a espada apontada para Romeu, a briga que ele queria), logo mergulha no duelo que terminará na sua morte.
Por isso, nada me surpreendeu mais na adaptação da BBC do que a tentativa de culpar Mercúcio pela briga e inocentar Teobaldo – interpretado pelo sempre maravilhoso Alan Rickman, o Severus Snape dos filmes de Harry Potter. As palavras são as mesmas, mas que diferença faz a ação: uma vez começado o duelo, Teobaldo faz de tudo para fugir ou de-escalar, enquanto Mercúcio ataca e ataca, furiosamente, insolentemente, até morrer.
Por que essa escolha de, no momento crucial da peça, manipular a percepção do público para gostar um pouco menos do personagem mais querido e desgostar um pouco menos do mais antipático?
* * *
Páris: a morte mais patética
Curiosamente, a mudança que mais me chamou atenção no filme de Baz Luhrman segue a mesma linha, mas dessa vez serve para preservar a imagem de Romeu.
Páris, nobre pretendente de Julieta, sem saber que ela já havia se casado com Romeu em segredo, tinha casamento marcado com ela. No dia, porém, Julieta acorda “morta”, teoricamente de tanto sofrer a morte de seu querido primo Teobaldo. Enlutado, Páris vai levar flores em sua tumba, onde encontra o mais sofrido ainda Romeu, que veio se matar ao lado da esposa. Romeu, desesperado mas honrado, pede que vá embora. Páris, sabendo que Romeu era o assassino de Teobaldo e, consequentemente, responsável pela “morte” de Julieta, exige que ele se entregue às autoridades. Eles brigam, Páris morre (V.iii).
Páris é a personagem mais patética de toda a peça. Romeu, Mercúcio, Teobaldo são valentões que começam brigas com muita facilidade. O frei é um completo idiota inconsequente. Os pais de Julieta são autoritários na pior hora. Mas Páris, coitado, faz tudo sempre certinho: ele é bom, nobre, honrado, compreensivo. Quando confronta Romeu, não é por ser um encrenqueiro, mas para levar à justiça um assassino condenado, em flagrante violação de seu exílio. Em suas últimas palavras, depois de mortalmente ferido, poderia ter amaldiçoado a mulher que o levou a morte (sem que tenha usufruído nada desse amor), mas somente implora, pateticamente, romanticamente, para ser enterrado com ela – que nem morta está.
Todos morrem na mais completa ignorância de porque morrem. Mercúcio e Teobaldo morrem sem saber do casamento secreto de Romeu e Julieta: Teobaldo morre sem entender porque Romeu diz que o ama (é primo de sua esposa e agora também sem primo); Mercúcio morre sem entender porque Romeu tenta apartar a briga. Páris, sem saber que sua falecida futura esposa não poderia nem ser sua esposa (já era casada) nem estava morta (apenas fingindo), morre nas mãos de seu marido – que também a acreditava morta.
Mas Páris, único que morre sem culpa alguma, único a quem nada pode ser imputado, tem a morte mais trágica e mais patética, mais injusta e mais aleatória, o ponto mais baixo da crise, o símbolo de que tudo deu errado.
E é essa morte que inexplicavelmente Baz Luhrman não mostra. Por quê?
Romeo + Juliet, de todos os filmes de todos os tempos, é o meu preferido. Gosto de praticamente todas as escolhas dessa montagem: o fofíssimo bom moço Paul Rudd como Páris é só uma de muitas, assim como a inesquecível cenografia da tumba de Julieta, com seu excesso de flores e cruzes de neon azul.
Nesse cenário psicodélico, um Leonardo DiCaprio ensandecido matando o perfeitinho e inocente Paul Rudd diante de uma Claire Danes se fingindo de morta, ao som de sabe-se lá qual música perfeita, poderia ter sido um dos grandes momento do filme e, talvez, do cinema.
* * *
O ceticismo de Julieta
Não é só Páris que faz tudo certinho: Julieta também, a seu modo, é perfeitamente razoável, do começo ao fim, e até mesmo sua aceitação do plano imbecil de Frei Lourenço é razoável no contexto da situação desesperadora em que se encontrava. Apesar disso, o plano imbecil é realmente, de fato, bastante imbecil.
Então, confesso, a hora em que mais amo Julieta (que é tão, mas tão amável, inteligente, capaz ao longo de toda a peça) é quando, logo antes de tomar o soporífero, tem um momento cético e, pelo menos, nem que apenas por um segundo, questiona as motivações do frei:
“E se for um veneno este que o frade / Sutilmente me deu, e irá matar-me / Pra não perder a honra desta boda, / Já que antes me casou com meu Romeu? / Tenho medo que sim, mas não o creio / Pois ele sempre foi um homem santo.” (IV.iii)
A peça, entretanto, não deixa dúvida que Julieta estava certa em confiar nas intenções de Frei Lourenço: era mesmo um homem bom e santo, só não muito razoável.
Um outro autor (jamais Shakespeare, mas nosso Machado certamente) talvez tivesse cortado algumas partes estratégicas das cenas do Frei justamente para deixar a dúvida: será que foi tudo apenas um esquema idiota que não certo, ou terá sido esse um plano diabólico – e bem-sucedido – desde o começo?
* * *
Vender drogas, ou Ao que a pobreza nos obriga
De tantos trechos preferidos, destaco um que não recebe muita atenção mas é emblemático não só da consciência social de Shakespeare, mas também do carinho que dedicava a cada personagem, por mais minúsculo.
Tarde da noite, em Mântua, recém-acabado de saber da “morte” de Julieta, Romeu bate na casa de um boticário e tenta comprar, ilegalmente, o veneno com o qual dará cabo da própria vida.
Para começar, todo o personagem do boticário, sua vida, suas limitações, seus planos, seus desejos, já está contida, sugerida, demonstrada na descrição da sua casa:
Romeu: Eu me lembro que há um boticário / Que mora por aqui — há pouco o vi, / Em andrajos, com o ar preocupado, / Catando ervas. Com o aspecto esquálido, / Sua miséria lhe exibia os ossos. / Em sua loja pendem tartarugas, / Jacarés empalhados, outras peles / De estranhos peixes; e nas, prateleiras, / Uma fila de caixas já vazias, / Potes, bexigas e sementes secas, / Pedaços de barbantes, rosas secas, / Se espalham para disfarçar o quadro. / Notando essa penúria, pensei eu: / “Se alguém, agora, quisesse um veneno / Proibido com morte aqui em Mântua, / Esse é o infeliz que o poderia obter.” Prenunciava esta necessidade! Pois ele há de vender-me o que eu preciso.” (V.i)
De certa maneira, Romeu e Julieta é uma peça sobre drogas. As primeiras palavras que ouvimos de Frei Lourenço são sobre drogas, seu poder ambíguo de tanto curar como matar (II.iii). Depois, faz um discurso semelhante para convencer Julieta a tomar a droga que lhe fará dormir, simulando sua morte (IV.i).
Mantendo essa pegada, o filme de Baz Luhrman aumenta e radicaliza a aposta. Uma de suas muitas sacadas geniais é transformar o completamente alucinado discurso de Mercúcio sobre a Rainha das Fadas (I.iv) em uma viagem de ecstasy – declamado em drag, ainda por cima.
Por fim, na casa do boticário, Romeu pede por uma outra droga, dessa vez nada ambígua, uma droga que apenas mata:
Romeu: Venha cá, homem. Sei que não tem nada; / Eis quarenta ducados pra me dar / Um pouco de veneno, coisa rápida, / Que se espalhe por veias e artérias / E faça quem o tomar cair morto, / E o hálito fugir de tronco e membros / Com a violência e a velocidade / Que a bala sai do ventre do canhão.
Boticário: Tenho a droga mortal, porém as leis / Dão morte para quem a fornecer.
Romeu: E você, tão coberto de desgraças, / Teme morrer? O seu rosto é de fome; / Pobreza e opressão comem seus olhos; / Desprezo e mendicância é que o vestem; / As leis do mundo não lhe têm amor: / Nenhuma lei do mundo o fará rico; / Pois, pobre, quebre a lei e aceite isto.
Boticário: Consinto por pobreza, não vontade.
Romeu: Eu não pago a vontade, só a pobreza.
Boticário: Desmanche este veneno em qualquer líquido. / Tome-o, e até com a força de mais vinte, / Ele o despacha no mesmo momento.
Romeu: Eis o seu ouro, um veneno pra alma / Que mata muito mais por este mundo / Que este pó, que ninguém pode vender. / Você comprou veneno, não vendeu; / Adeus, compre comida e ganhe peso. / Eu não comprei veneno, comprei cura; / E bebo ao meu amor, na sepultura. (V.i)
Romeu, menino rico e inconsequente, acostumado a ser paparicado por serviçais obedientes, cego de amor e desesperado de luto, não tem pudor algum em usar seu poder econômico para conseguir o que deseja, nem que para isso uma pessoa mais pobre arrisque a própria vida. Pior, na carta que envia ao seu pai, lida em voz alta pelo príncipe na última cena (V.iii), revela de quem comprou o veneno.
Certamente enforcado em Mântua, o pobre boticário, elo mais fraco da corrente, é a última vítima do amor desse par de amantes nascidos sobre má estrela, Romeu e Julieta.
* * *
Pós-escrito
Aproveitei o isolamento social para reler Romeu e Julieta, que tinha lido somente na escola. Li a versão original da peça; li a adaptação em quadrinhos de Gianni de Lucca (1978), cujas páginas ilustram esse texto; ouvi o áudiolivro da Arkangel Shakespeare; assisti a adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (1978); e, por fim, reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.
As pessoas às vezes me perguntam “como leio tanto” como se fosse alguma mágica.
Ora, o áudiolivro e a adaptação da BBC, ambas com texto integral, tem três horas cada, e o filme, duas. Dá um total de oito horas. Consumi tudo em um único dia de isolamento social, quinta, 26 de março, enquanto ainda cozinhei três refeições, lavei toda a louça e limpei o banheiro, além de curtir e agarrar minha esposa.
Quando as pessoas me perguntam isso, eu é que me pergunto por qual ralo escoa todo seu tempo.
A vida é questão de definir prioridades: a minha é literatura. Imagino que essas pessoas que não conseguem ler tenham outras prioridades e que, nelas, sejam tão produtivas quanto eu nas minhas.
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Como esquecer um nome?
Um dos principais obstáculos de Julieta para gozar seu grande amor é justamente o nome de seu amado, que pertence a uma família rival à sua:
“O que há num nome? O que chamamos rosa / Teria o mesmo cheiro com outro nome; / E assim Romeu, chamado de outra coisa / Continuaria sempre a ser perfeito, / Com outro nome. Mude-o, Romeu, / E, em troca dele, que não é você, / Fique comigo.” (II.ii, ou seja, segundo ato, segunda cena, na excelente tradução de Barbara Heliodora.)
Curiosamente, para nós pessoas leitoras do XXI, um dos principais obstáculos para gozar a peça também é o nome de Romeu.
Meu dicionário Houaiss registra “romeu” como “indivíduo muito enamorado”. (Aliás, “julieta” não é verbete.) Ou seja, a peça já faz tão parte da nossa psique amorosa, da nossa cultura literária, das nossas referências compartilhadas, que, a cada vez que algum personagem fala o nome de Romeu
Teobaldo: “Romeu, o amor que eu lhe dedico exige / Que lhe diga na cara que é um vilão.” (III.i)
é preciso des-ouvir “Romeu” como “indivíduo muito enamorado”, é preciso esquecer os 420 anos nos quais essa peça foi um elemento central da nossa cultura poética, e “ouvir” “Romeu” como se fosse um nome qualquer, um mero Arthur ou um simples Godofredo.
No conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, um literato francês embarca em seu projeto artístico mais ambicioso: reescrever o livro Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, mas no século XX. Não apenas copiando cada linha do original, o que seria fácil, mas ativamente esquecendo todos os séculos intermediários, desde a decadência do Império Espanhol, passando pela Revolução Francesa, até a Primeira Guerra Mundial. Desse modo, frases que seriam triviais saindo da pena de um escritor do século XVII se tornariam “assombrosas” assinadas por um intelectual do XX. (“Não há exercício intelectual que não seja, por fim, inútil”, sentencia o conto, disponível no livro Ficções e certamente um dos cinco melhores contos de todos os tempos.)
O crítico literário Harold Bloom fala em “angústia da influência” para descrever a luta interna que cada poeta precisa travar dentro de si para vencer seus mestres, seus ídolos, e encontrar sua própria voz. Talvez pudéssemos também falar em “angústia da referência”, para descrever aquelas obras que, mesmo a nós, simples pessoas leitoras, nos oprimem com o peso de sua ubiquidade cultural.
Afinal, como ler Romeu e Julieta (ou Dom Quixote) com a mente fresca e limpa? Como esquecer obras que nos formaram como pessoas leitoras? Como des-ler os livros que moldaram o nosso próprio processo de recepção literária?
* * *
Uma comédia com final de tragédia
Em sua edição das obras completas de Shakespeare, a editora Everyman’s Library coloca Romeu e Julieta (cujo título completo é The tragedy of Romeo and Juliet) em um dos volumes de comédia. O editor se justifica dizendo que a peça só não é uma comédia por cerca de um minuto, quando Romeu se mata logo antes de Julieta acordar. “Com certeza é uma tragédia”, admite ele, “mas segue toda a estrutura clássica de uma comédia”.
De fato, talvez seja exatamente esse o grande atrativo da peça: ter um set-up de comédia e um final de tragédia.
Hamlet, Othello, Macbeth, Lear são grandes obras em qualquer acepção do termo, mas, Deus do céu, ave-maria cruz-credo, especialmente as duas últimas, são pesadas, são dolorosas, são intensas. (Lear é a dor em forma de texto.)
Já Romeu e Julieta é leve e divertida, mas também agitada e envolvente, tem a Ama e tem Mercúcio, toda rimada e cheia de trocadilhos – o que só faz com que a porrada, quando venha, mesmo tendo sido anunciada desde o começo, seja ainda mais dolorosa, ainda mais injusta, ainda mais cruel.
Por um lado, Romeu e Julieta não tem nenhum vilão ultra-malvado, torcendo os próprios bigodes e narrando as próprias vilanias, como Iago, Macbeth, Edmund. Sim, são personagens maravilhosos e divertidos, mas quase Deus ex machinas ao contrário. Quem resistiria à tamanha malvadeza concentrada? São quase a garantia do final infeliz. E podemos dormir tranquilas: qual é a chance de nos depararmos com um Iago em nossas vidas?
Por outro lado, o fato de não ter vilões (pobre Teobaldo é só um menino esquentadinho), me parece ainda mais apavorante. O que causa a tragédia dos jovens amantes, nascidos sob má estrela, é tudo aquilo que também causa tragédias em nossas vidas: um amigo encrenqueiro pra cá, uma família autoritária pra lá, adolescentes cheios de hormônios e inconsequentes aqui, um plano meio idiota e excessivamente otimista acolá. O trágico em Romeu e Julieta é justamente saber que tudo não deu certo por muito, muito pouco.
Como diz o Príncipe, em uma das últimas falas:
“Todos são punidos.”
E, no filme de Baz Luhrman, para maior efeito, ainda repete – sempre com ênfase no “e” normalmente não pronunciado:
“All are punishèd.”
Ou, no que seria minha frase preferida da peça se não tivesse sido tirada verbatim de Troilo e Criseida, de Chaucer:
“These violent delights have violent ends.” (“Esses prazeres violentos têm finais violentos”)
(Na série Westworld, é essa citação que ativa a programação assassina da anfitriã Dolores.)
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A peste em Romeu e Julieta
O dia que dediquei para ler e assistir diferentes versões de Romeu e Julieta foi quinta, 26 de março de 2020. Não é uma data qualquer, mas o 15º dia de meu auto-isolamento social causado pelo coronavírus; que eu, enquanto escrevo e vocês, enquanto leem, não sabemos nem quanto vai durar, nem se vamos sobreviver.
Shakespeare, que morreu há 400 anos e teve uma vida tão diferente da nossa, tinha bastante familiaridade com nosso dilema. A peste atingiu sua vila natal poucos meses depois de seu nascimento, em 1564; teoricamente ele e seus pais desenvolveram algum tipo de imunidade. Ao longo de sua vida adulta, quando trabalhava como ator e dramaturgo, ou como dono de sua própria companhia teatral, novas erupções da peste continuavam forçando os teatros a permanecerem fechados por meses ou anos, época em que aproveitava para escrever ativamente. Boa parte de suas maiores obras provavelmente foram escritas em períodos de isolamento social como o que estamos vivendo agora. (Pense no que você está fazendo em seu isolamento.)
Apesar de ser um presença forte em sua vida (como está sendo na nossa!), a peste não figura com muita frequência em sua obra. Curiosamente, a peça em que talvez tenha mais importância no enredo seja justamente Romeu e Julieta. Afinal, Romeu apenas se mata diante de Julieta por não saber que ela estava somente dormindo. E por que ele não recebeu essa informação?
No caminho entre Verona (onde se passa a história) e Mântua (onde Romeu estava escondido), Frei João visita um irmão encarregado de cuidar de pessoas doentes. Enquanto estava na casa, as autoridades sanitárias, considerando que tinham sido expostos à peste, selam as portas, prendendo lá dentro não só Frei João mas também a mensagem que teria salvo as vidas de Romeu, Julieta e também Páris (V.ii).
Tudo por causa da quarentena. Tudo por causa da peste.
E eu penso: quantos casos de amor, embrionários, quase começando, não foram abortados por nosso atual isolamento? Quantas coisas não deixarão de acontecer?
* * *
Shakespeare: ler ou assistir?
Existe toda uma controvérsia: é melhor ler ou assistir Shakespeare?
Por um lado, as peças foram escritas para ser assistidas. Não são textos para ser lidos silenciosamente, na solidão de casa: como todo texto teatral, são uma parte pequena de uma experiência cultural maior, coletiva, cinética.
Por outro, puristas defendem que as adaptações são em geral tão, mas tão ruins que estragam o texto, e que é melhor ler por conta própria do que se deixar contaminar pela visão deturpada de um diretor que pode ter des-lido a peça.
Ambos têm alguma razão.
Meu método pessoal é escutar um bom áudiolivro enquanto acompanho o texto escrito. O inglês de Shakespeare, infelizmente, está tão distante de nós que, às vezes, mesmo para falantes nativos, é difícil extrair o significado do texto. Um bom áudiolivro, com atores competentes colocando as pausas e as ênfases nos lugares certos, faz o sentido emergir de trechos que eram obscuros lidos silenciosamente. (Recomendo a coleção Complete Arkangel Shakespeare, uma série de áudiolivros de todas as peças de Shakespeare, com texto integral e grande elenco.)
Depois, tento assistir uma ou outra boa adaptação audiovisual, para ver o texto ganhando vida silenciosamente. (A série BBC Television Shakespeare, exibida entre 1978 e 1985, tem momentos desiguais, mas a vantagem é trazer o texto sempre integral.)
* * *
Duelo de simpatias: Teobaldo vs Mercúcio
A melhor coisa de assistir adaptações depois de ler as peças é registrar as principais mudanças e refletir sobre elas.
Agora, por exemplo, assisti à adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (dirigida por Alvin Rakoff em 1978) e também reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.
As diferenças que mais me chamaram atenção entre essas adaptações e o texto original tiveram a ver com um certo grau de manipulação das simpatias do público para esse ou aquele personagem. Comecemos pela BBC.
O momento crucial da peça, exatamente na metade, seu ponto de inflexão, o momento em que tudo começa a dar errado e não para mais, é a briga que termina com Teobaldo e Mercúcio mortos (III.i).
No texto, a sequência acontece assim: Mercúcio está conversando com amigos; Teobaldo chega e pergunta por Romeu; Romeu aparece; Teobaldo agradece, vai falar com Romeu, puxa briga, saca a espada; Romeu se recusa a brigar, mas Mercúcio (seu melhor amigo) compra a briga; Teobaldo, de espada em riste, se recusa a brigar com Mercúcio, pois sua briga é com Romeu; Mercúcio força a briga e saca a espada; Romeu tenta apartar; Teobaldo mata Mercúcio com um golpe por debaixo do braço de Romeu; Romeu mata Teobaldo.
Teobaldo claramente é um encrenqueiro. Na primeira cena, ele começa outra briga, onde afirma odiar a paz e todos os Montéquios. Mais tarde, na festa dos Capuletos, avista o penetra Romeu e teria criado uma confusão ali mesmo se não tivesse sido forçosamente impedido pelo anfitrião. Teobaldo é o mais perto de um vilão que a peça tem.
Já Mercúcio (o mais perto de um bobo que a peça tem e talvez seu personagem mais querido) também não é santo. Dá para argumentar que entra na briga para defender Romeu, mas não é verdade: Mercúcio escolhe forçar um confronto onde talvez não acontecesse nenhum. Teobaldo, que hesita uma única vez em aceitar (porque estava com a espada apontada para Romeu, a briga que ele queria), logo mergulha no duelo que terminará na sua morte.
Por isso, nada me surpreendeu mais na adaptação da BBC do que a tentativa de culpar Mercúcio pela briga e inocentar Teobaldo – interpretado pelo sempre maravilhoso Alan Rickman, o Severus Snape dos filmes de Harry Potter. As palavras são as mesmas, mas que diferença faz a ação: uma vez começado o duelo, Teobaldo faz de tudo para fugir ou de-escalar, enquanto Mercúcio ataca e ataca, furiosamente, insolentemente, até morrer.
Por que essa escolha de, no momento crucial da peça, manipular a percepção do público para gostar um pouco menos do personagem mais querido e desgostar um pouco menos do mais antipático?
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Páris: a morte mais patética
Curiosamente, a mudança que mais me chamou atenção no filme de Baz Luhrman segue a mesma linha, mas dessa vez serve para preservar a imagem de Romeu.
Páris, nobre pretendente de Julieta, sem saber que ela já havia se casado com Romeu em segredo, tinha casamento marcado com ela. No dia, porém, Julieta acorda “morta”, teoricamente de tanto sofrer a morte de seu querido primo Teobaldo. Enlutado, Páris vai levar flores em sua tumba, onde encontra o mais sofrido ainda Romeu, que veio se matar ao lado da esposa. Romeu, desesperado mas honrado, pede que vá embora. Páris, sabendo que Romeu era o assassino de Teobaldo e, consequentemente, responsável pela “morte” de Julieta, exige que ele se entregue às autoridades. Eles brigam, Páris morre (V.iii).
Páris é a personagem mais patética de toda a peça. Romeu, Mercúcio, Teobaldo são valentões que começam brigas com muita facilidade. O frei é um completo idiota inconsequente. Os pais de Julieta são autoritários na pior hora. Mas Páris, coitado, faz tudo sempre certinho: ele é bom, nobre, honrado, compreensivo. Quando confronta Romeu, não é por ser um encrenqueiro, mas para levar à justiça um assassino condenado, em flagrante violação de seu exílio. Em suas últimas palavras, depois de mortalmente ferido, poderia ter amaldiçoado a mulher que o levou a morte (sem que tenha usufruído nada desse amor), mas somente implora, pateticamente, romanticamente, para ser enterrado com ela – que nem morta está.
Todos morrem na mais completa ignorância de porque morrem. Mercúcio e Teobaldo morrem sem saber do casamento secreto de Romeu e Julieta: Teobaldo morre sem entender porque Romeu diz que o ama (é primo de sua esposa e agora também sem primo); Mercúcio morre sem entender porque Romeu tenta apartar a briga. Páris, sem saber que sua falecida futura esposa não poderia nem ser sua esposa (já era casada) nem estava morta (apenas fingindo), morre nas mãos de seu marido – que também a acreditava morta.
Mas Páris, único que morre sem culpa alguma, único a quem nada pode ser imputado, tem a morte mais trágica e mais patética, mais injusta e mais aleatória, o ponto mais baixo da crise, o símbolo de que tudo deu errado.
E é essa morte que inexplicavelmente Baz Luhrman não mostra. Por quê?
Romeo + Juliet, de todos os filmes de todos os tempos, é o meu preferido. Gosto de praticamente todas as escolhas dessa montagem: o fofíssimo bom moço Paul Rudd como Páris é só uma de muitas, assim como a inesquecível cenografia da tumba de Julieta, com seu excesso de flores e cruzes de neon azul.
Nesse cenário psicodélico, um Leonardo DiCaprio ensandecido matando o perfeitinho e inocente Paul Rudd diante de uma Claire Danes se fingindo de morta, ao som de sabe-se lá qual música perfeita, poderia ter sido um dos grandes momento do filme e, talvez, do cinema.
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O ceticismo de Julieta
Não é só Páris que faz tudo certinho: Julieta também, a seu modo, é perfeitamente razoável, do começo ao fim, e até mesmo sua aceitação do plano imbecil de Frei Lourenço é razoável no contexto da situação desesperadora em que se encontrava. Apesar disso, o plano imbecil é realmente, de fato, bastante imbecil.
Então, confesso, a hora em que mais amo Julieta (que é tão, mas tão amável, inteligente, capaz ao longo de toda a peça) é quando, logo antes de tomar o soporífero, tem um momento cético e, pelo menos, nem que apenas por um segundo, questiona as motivações do frei:
“E se for um veneno este que o frade / Sutilmente me deu, e irá matar-me / Pra não perder a honra desta boda, / Já que antes me casou com meu Romeu? / Tenho medo que sim, mas não o creio / Pois ele sempre foi um homem santo.” (IV.iii)
A peça, entretanto, não deixa dúvida que Julieta estava certa em confiar nas intenções de Frei Lourenço: era mesmo um homem bom e santo, só não muito razoável.
Um outro autor (jamais Shakespeare, mas nosso Machado certamente) talvez tivesse cortado algumas partes estratégicas das cenas do Frei justamente para deixar a dúvida: será que foi tudo apenas um esquema idiota que não certo, ou terá sido esse um plano diabólico – e bem-sucedido – desde o começo?
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Vender drogas, ou Ao que a pobreza nos obriga
De tantos trechos preferidos, destaco um que não recebe muita atenção mas é emblemático não só da consciência social de Shakespeare, mas também do carinho que dedicava a cada personagem, por mais minúsculo.
Tarde da noite, em Mântua, recém-acabado de saber da “morte” de Julieta, Romeu bate na casa de um boticário e tenta comprar, ilegalmente, o veneno com o qual dará cabo da própria vida.
Para começar, todo o personagem do boticário, sua vida, suas limitações, seus planos, seus desejos, já está contida, sugerida, demonstrada na descrição da sua casa:
Romeu: Eu me lembro que há um boticário / Que mora por aqui — há pouco o vi, / Em andrajos, com o ar preocupado, / Catando ervas. Com o aspecto esquálido, / Sua miséria lhe exibia os ossos. / Em sua loja pendem tartarugas, / Jacarés empalhados, outras peles / De estranhos peixes; e nas, prateleiras, / Uma fila de caixas já vazias, / Potes, bexigas e sementes secas, / Pedaços de barbantes, rosas secas, / Se espalham para disfarçar o quadro. / Notando essa penúria, pensei eu: / “Se alguém, agora, quisesse um veneno / Proibido com morte aqui em Mântua, / Esse é o infeliz que o poderia obter.” Prenunciava esta necessidade! Pois ele há de vender-me o que eu preciso.” (V.i)
De certa maneira, Romeu e Julieta é uma peça sobre drogas. As primeiras palavras que ouvimos de Frei Lourenço são sobre drogas, seu poder ambíguo de tanto curar como matar (II.iii). Depois, faz um discurso semelhante para convencer Julieta a tomar a droga que lhe fará dormir, simulando sua morte (IV.i).
Mantendo essa pegada, o filme de Baz Luhrman aumenta e radicaliza a aposta. Uma de suas muitas sacadas geniais é transformar o completamente alucinado discurso de Mercúcio sobre a Rainha das Fadas (I.iv) em uma viagem de ecstasy – declamado em drag, ainda por cima.
Por fim, na casa do boticário, Romeu pede por uma outra droga, dessa vez nada ambígua, uma droga que apenas mata:
Romeu: Venha cá, homem. Sei que não tem nada; / Eis quarenta ducados pra me dar / Um pouco de veneno, coisa rápida, / Que se espalhe por veias e artérias / E faça quem o tomar cair morto, / E o hálito fugir de tronco e membros / Com a violência e a velocidade / Que a bala sai do ventre do canhão.
Boticário: Tenho a droga mortal, porém as leis / Dão morte para quem a fornecer.
Romeu: E você, tão coberto de desgraças, / Teme morrer? O seu rosto é de fome; / Pobreza e opressão comem seus olhos; / Desprezo e mendicância é que o vestem; / As leis do mundo não lhe têm amor: / Nenhuma lei do mundo o fará rico; / Pois, pobre, quebre a lei e aceite isto.
Boticário: Consinto por pobreza, não vontade.
Romeu: Eu não pago a vontade, só a pobreza.
Boticário: Desmanche este veneno em qualquer líquido. / Tome-o, e até com a força de mais vinte, / Ele o despacha no mesmo momento.
Romeu: Eis o seu ouro, um veneno pra alma / Que mata muito mais por este mundo / Que este pó, que ninguém pode vender. / Você comprou veneno, não vendeu; / Adeus, compre comida e ganhe peso. / Eu não comprei veneno, comprei cura; / E bebo ao meu amor, na sepultura. (V.i)
Romeu, menino rico e inconsequente, acostumado a ser paparicado por serviçais obedientes, cego de amor e desesperado de luto, não tem pudor algum em usar seu poder econômico para conseguir o que deseja, nem que para isso uma pessoa mais pobre arrisque a própria vida. Pior, na carta que envia ao seu pai, lida em voz alta pelo príncipe na última cena (V.iii), revela de quem comprou o veneno.
Certamente enforcado em Mântua, o pobre boticário, elo mais fraco da corrente, é a última vítima do amor desse par de amantes nascidos sobre má estrela, Romeu e Julieta.
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Pós-escrito
Aproveitei o isolamento social para reler Romeu e Julieta, que tinha lido somente na escola. Li a versão original da peça; li a adaptação em quadrinhos de Gianni de Lucca (1978), cujas páginas ilustram esse texto; ouvi o áudiolivro da Arkangel Shakespeare; assisti a adaptação televisiva da BBC Television Shakespeare (1978); e, por fim, reassisti meu filme preferido de todos os tempos, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrman.
As pessoas às vezes me perguntam “como leio tanto” como se fosse alguma mágica.
Ora, o áudiolivro e a adaptação da BBC, ambas com texto integral, tem três horas cada, e o filme, duas. Dá um total de oito horas. Consumi tudo em um único dia de isolamento social, quinta, 26 de março, enquanto ainda cozinhei três refeições, lavei toda a louça e limpei o banheiro, além de curtir e agarrar minha esposa.
Quando as pessoas me perguntam isso, eu é que me pergunto por qual ralo escoa todo seu tempo.
A vida é questão de definir prioridades: a minha é literatura. Imagino que essas pessoas que não conseguem ler tenham outras prioridades e que, nelas, sejam tão produtivas quanto eu nas minhas.
Published on March 27, 2020 17:24
April 28, 2019
Notre-Dame de Paris
Faz duas semanas, no dia 15 de abril de 2019, a Catedral de Notre-Dame pegou fogo.
No mesmo dia, comecei a ler "Notre-Dame de Paris" (1831), também conhecido como "O corcunda de Notre-Dame", romance de Victor Hugo, há muito na minha fila de leitura.
Um livro escrito, entre outras coisas, para recuperar a memória da Idade Média e revalorizar a sua herança cultural, que perigava de ser esquecida e apagada pelos ventos iluministas da Revolução Francesa.
Acabei hoje, 28 de abril de 2019. Agora. Estou chocado. Embasbacado. Mexido.
Quando acabei de ler "Os Miseráveis" (1862), não tive a menor dúvida de colocá-lo no topo da minha lista de romances preferidos. "Notre-Dame de Paris" só não é melhor por ser menor. Ambos são maravilhosos, perfeitos, "Os Miseráveis" ganha somente na amplitude.
Que romance, minhas amigas, que romance. Não tem como um romance ser melhor que isso. Foi pra isso que inventamos o romance.
Não sei o que dizer. Essa é a minha resenha.
Agora, quero ler também "Gargantua e Pantagruel" (1532-52), de Rabelais. (O gigante Gargantua foi outro célebre habitante de Notre-Dame, hoje em dia eclipsado por Quasímodo.)
Mas, sobretudo, quero ler tudo de Victor Hugo que ainda me falta: "Trabalhadores do Mar" (1866), "O homem que ri" (1869) e "Noventa e três" (1874).
Obrigado, irmão Victor. Obrigado.
Só para constar, minha lista de romances perfeitos: "Cem anos de solidão" (1967), "Grande sertão: veredas" (1956), "Guerra e paz" (1869), "Ilíada" (c.séc.IXaec), "Os Miseráveis" (1862), "Moby Dick" (1851) e "Manuscrito encontrado em Saragoça" (1815). Se tivesse que escolher um preferido entre esses, seria por pontos.
Na imagem: Gargantua em Notre-Dame, por Gustave Doré
Abaixo, o prefácio de "Os Miseráveis":
"Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino;
enquanto os três problemas do século - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância - não forem resolvidos;
enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social;
em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis."
No mesmo dia, comecei a ler "Notre-Dame de Paris" (1831), também conhecido como "O corcunda de Notre-Dame", romance de Victor Hugo, há muito na minha fila de leitura.
Um livro escrito, entre outras coisas, para recuperar a memória da Idade Média e revalorizar a sua herança cultural, que perigava de ser esquecida e apagada pelos ventos iluministas da Revolução Francesa.
Acabei hoje, 28 de abril de 2019. Agora. Estou chocado. Embasbacado. Mexido.
Quando acabei de ler "Os Miseráveis" (1862), não tive a menor dúvida de colocá-lo no topo da minha lista de romances preferidos. "Notre-Dame de Paris" só não é melhor por ser menor. Ambos são maravilhosos, perfeitos, "Os Miseráveis" ganha somente na amplitude.
Que romance, minhas amigas, que romance. Não tem como um romance ser melhor que isso. Foi pra isso que inventamos o romance.
Não sei o que dizer. Essa é a minha resenha.
Agora, quero ler também "Gargantua e Pantagruel" (1532-52), de Rabelais. (O gigante Gargantua foi outro célebre habitante de Notre-Dame, hoje em dia eclipsado por Quasímodo.)
Mas, sobretudo, quero ler tudo de Victor Hugo que ainda me falta: "Trabalhadores do Mar" (1866), "O homem que ri" (1869) e "Noventa e três" (1874).
Obrigado, irmão Victor. Obrigado.
Só para constar, minha lista de romances perfeitos: "Cem anos de solidão" (1967), "Grande sertão: veredas" (1956), "Guerra e paz" (1869), "Ilíada" (c.séc.IXaec), "Os Miseráveis" (1862), "Moby Dick" (1851) e "Manuscrito encontrado em Saragoça" (1815). Se tivesse que escolher um preferido entre esses, seria por pontos.
Na imagem: Gargantua em Notre-Dame, por Gustave Doré
Abaixo, o prefácio de "Os Miseráveis":
"Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino;
enquanto os três problemas do século - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância - não forem resolvidos;
enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social;
em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis."
Published on April 28, 2019 10:18
April 19, 2019
Por onde começar a ler Machado de Assis
Minha querida namorada, apesar de amar literatura, tinha ranço do Machado, como tantas de nós, por ter sido forçada a ler o Bruxo muito jovem.
Argumentei que ela não podia dizer que não gostava do maior escritor da nossa língua sem ter lhe dado uma chance justa. Então, pedi para que lesse cinco contos dele, que eu escolheria. Se continuasse não gostando, aí sim poderia bater no peito e dizer que "não gostava de Machado".
Foi uma escolha dificílima, mas eis aqui meu escrete dos cinco melhores e mais representativos contos de Machado de Assis:
"Cantiga de esponsais" (De "Histórias sem data", 1884)
"Noite de almirante" (De "Histórias sem data", 1884)
"A causa secreta" (De "Várias histórias", 1896)
"Missa do Galo" (De "Páginas recolhidas", 1899)
"Pai contra mãe" (De "Relíquias de casa velha", 1906)
Para quem está pensando em começar a namorar o Bruxo, eis aí minha sugestão.
Ah, ela adorou. Claro.
* * *
Para que fique registrado, aqui vão os meus contos preferidos, dentre os publicados em livro, sem restrição numérica:
Relíquias de casa velha (1906): “Pai contra mãe”, “Maria Cora”, “Um capitão de voluntários”, “Suje-se gordo”.
Páginas recolhidas (1899): “O caso da vara”, “Um erradio”, “Missa do galo”.
Várias histórias (1895): “A cartomante”, “Entre santos”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “O diplomático”, “Mariana”, “D.Paula”.
Histórias sem data (1884): “Cantiga de esponsais”, “Capítulo dos chapéus”, “Uma senhora”, “Conto alexandrino”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”.
Papéis avulsos (1882): “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “O segredo do Bonzo”, “A sereníssima república”, “Verba testamentária”.
* * *
Gosta dos meus textos? Então, me segue por aí:
Site: alexcastro.com.br
FB: /alexcastroescritor
Twitter: @outrofobia
Insta: @outrofobia
Goodreads: /outrofobia
Argumentei que ela não podia dizer que não gostava do maior escritor da nossa língua sem ter lhe dado uma chance justa. Então, pedi para que lesse cinco contos dele, que eu escolheria. Se continuasse não gostando, aí sim poderia bater no peito e dizer que "não gostava de Machado".
Foi uma escolha dificílima, mas eis aqui meu escrete dos cinco melhores e mais representativos contos de Machado de Assis:
"Cantiga de esponsais" (De "Histórias sem data", 1884)
"Noite de almirante" (De "Histórias sem data", 1884)
"A causa secreta" (De "Várias histórias", 1896)
"Missa do Galo" (De "Páginas recolhidas", 1899)
"Pai contra mãe" (De "Relíquias de casa velha", 1906)
Para quem está pensando em começar a namorar o Bruxo, eis aí minha sugestão.
Ah, ela adorou. Claro.
* * *
Para que fique registrado, aqui vão os meus contos preferidos, dentre os publicados em livro, sem restrição numérica:
Relíquias de casa velha (1906): “Pai contra mãe”, “Maria Cora”, “Um capitão de voluntários”, “Suje-se gordo”.
Páginas recolhidas (1899): “O caso da vara”, “Um erradio”, “Missa do galo”.
Várias histórias (1895): “A cartomante”, “Entre santos”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “O diplomático”, “Mariana”, “D.Paula”.
Histórias sem data (1884): “Cantiga de esponsais”, “Capítulo dos chapéus”, “Uma senhora”, “Conto alexandrino”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”.
Papéis avulsos (1882): “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “O segredo do Bonzo”, “A sereníssima república”, “Verba testamentária”.
* * *
Gosta dos meus textos? Então, me segue por aí:
Site: alexcastro.com.br
FB: /alexcastroescritor
Twitter: @outrofobia
Insta: @outrofobia
Goodreads: /outrofobia
Published on April 19, 2019 16:41
March 28, 2019
Wisława Szymborska
Estou absolutamente apaixonado pela poetisa polonesa Wisława Szymborska (Visuáva Chamborska), ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.
* * *
Poesia no Brasil
Ela tem dois livros de poesias publicados no Brasil, pela Companhia das Letras: "Poemas" (2011) e "Um amor feliz" (2016).
Como sempre, apesar de a editora ser ótima, o mercado editorial brasileiro está mal-servido.
Essas edições têm dois problemas: em primeiro lugar, do alto do meu total desconhecimento de polonês, não fiquei empolgado pelas traduções. Falta... vida? poesia?
Em segundo lugar, mais importante, são edições bilíngues. Eu me pergunto: por quê?
Edição bilíngue é algo que faz sentido quando são de línguas antigas que muitas pessoas ainda tentam aprender, como grego e latim, ou de línguas com muitas falantes entre nós, como inglês ou francês, mas qual o sentido de uma edição bilíngue português-polonês? Quantas, das pessoas que compraram esses livros, vão ler os poemas em polonês?
Na prática, a leitora brasileira paga caro por um livro grosso mas que, na prática, traz poucos poemas. Não vale a pena.
* * *
Poesia em inglês
Szymborska está melhor servida pela tradução de Clare Cavanaugh e Stanislaw Baranczak, belíssima, forte, poética, e vencedora do prêmio PEN de tradução.
Eu tenho dois volumes: "Poems, new and collected" (1998) e "Map, collected and last poems" (2016). Muitos poemas aparecem em ambos. Se for comprar só um, recomendo o último.
* * *
Poesia em espanhol
A tradução espanhola talvez seja ainda melhor, levada a cabo por dois autores que são não apenas poetas de mão cheia mas também especialistas em literatura polonesa: o mexicano Gerardo Beltrán e o espanhol Abel Murcia. (Tenho o volume "Poesía no completa", de 2002, da excelente editora mexicana Fondo de Cultura Economica.)
As línguas são tão parecidas que a excelência da tradução espanhola só ressalta tudo aquilo que a tradução portuguesa poderia ter sido... e não foi.
* * *
A prosa
Durante anos, Szymborska manteve duas colunas na imprensa polonesa. Uma se chamava "Leituras não-obrigatórias" e eram resenhar curtas e bem-humoradas dos livros recebidos pela redação. A outra, "Correio literária", se voltava para tirar dúvidas de jovens escritores.
É difícil dizer qual dessas colunas é a mais maravilhosa. Szymborska é tão, mas tão foda que ela é absorvente e envolvente comentando livros poloneses que ninguém nunca ouviu falar. E os conselhos para jovens escritores também conseguem, ao mesmo tempo, ser empáticos e sarcásticos, mordazes e carinhosos.
Nenhum livro coletando essas colunas jamais saiu no Brasil, mas essa matéria na Piauí do ano passado traz alguns "correios literários": piaui.folha.uol.com.br/materia/correi... (Só para assinantes, infelizmente.)
As "Leituras não-obrigatórias" foram coletadas em inglês no volume "Non-required reading" (2002), traduzido por Clare Cavanaugh, mas só está disponível em hardcover, pode sair caro e traz apenas 200 páginas de resenhas. Prefiro o "Prosas reunidas" (2017), da espanhola Malpaso, que traz 600 páginas de resenhas e é um mundo para se perder.
Já as colunas do Correio Literário, que eu tenha conseguido descobrir, não foram publicadas nem em inglês. Tenho uma edição recém-lançada (2018) da espanhola Nordica: "Correo Literario. O cómo llegar a ser (o no llegar a ser) escritor".
* * *
Compartilho com vocês quatro versões do poema que me fez cair de quatro por Szymborska.
(Aliás, esse poema foi postado nos comentários de algum post meu por uma santa pessoa leitora. Depois disso, saí atrás da autora. Muito obrigado a quem fez isso. O maior favor que alguém pode me fazer é me apresentar a uma grande autora.)
O terrorista, ele observa
(Tradução brasileira de Regina Przybycien)
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de entrar;
Alguns de sair.
O terrorista já passou para o outro lado da rua.
A distância o livra de todo mal
E a vista, bom, é como no cinema:
Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Uns jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,
E aquele mais alto entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.
Só que aquele ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Se foi tola de entrar ou não.
Vai se saber quando os carregarem para fora.
Treze e dezenove.
Parece que ninguém mais entra.
Aliás, um gordo careca sai.
Mas remexe os bolsos como se procurasse algo.
E às treze e vinte menos dez segundos
Ele volta para buscar a droga das luvas.
São treze e vinte.
O tempo, como ele se arrasta.
Deve ser agora.
Ainda não.
É agora.
A bomba, ela explode.
* * *
O terrorista… olha
(Tradução portuguesa de Júlio Sousa Gomes)
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A que distância ficará livre de perigo
e, quanto à vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode
* * *
The Terrorist, He's watching
(Tradução inglesa de Stanislaw Baranczak and Claire Cavanagh)
The bomb in the bar will explode at thirteen twenty.
Now it’s just thirteen sixteen.
There’s still time for some to go in,
and some to come out.
The terrorist has already crossed the street.
The distance keeps him out of danger,
and what a view – just like the movies:
A woman in a yellow jacket, she’s going in.
A man in dark glasses, he’s coming out.
Teen-agers in jeans, they’re talking.
Thirteen seventeen and four seconds.
The short one, he’s lucky, he’s getting on a scooter,
but the tall one, he’s going in.
Thirteen seventeen and forty seconds.
That girl, she’s walking along with a green ribbon in her hair.
But then a bus suddenly pulls in front of her.
Thirteen eighteen.
The girl’s gone.
Was she that dumb, did she go in or not,
we’ll see when they carry them out.
Thirteen nineteen.
Somehow no one’s going in.
Another guy, fat, bald, is leaving, though.
Wait a second, looks like he’s looking for something in his pockets and
at thirteen twenty minus ten seconds
he goes back in for his crummy gloves.
Thirteen twenty exactly.
This waiting, it’s taking forever.
Any second now.
No, not yet.
Yes, now.
The bomb, it explodes.
* * *
Un terrorista: él observa
(Tradução espanhola de Abel A. Murcia)
La bomba explotará en el bar a las trece veinte.
Ahora apenas son las trece y dieciséis.
Algunos todavía tendrán tiempo de salir.
Otros de entrar.
El terrorista ya se ha situado al otro lado de la calle.
Esta distancia lo protege de cualquier mal
y se ve como en el cine:
Una mujer con una cazadora amarilla: ella entra.
Un hombre de anteojos oscuros: él sale.
Unos chicos con vaqueros: ellos Hablan.
Trece diecisiete y cuatro segundos.
EL más bajo tiene suerte y sube a una moto,
el más alto entra.
Trece diecisiete y cuarenta segundos.
Una niña: ella camina con una cinta verde en pelo.
Sólo que de repente ese autobús la tapa.
Trece dieciocho.
Ya no está la niña.
Habrá sido tan tonta como para entrar, o no,
eso ya se verá cuando los vayan sacando.
Trece diecinueve.
Y ahora como que no entra nadie.
En vez de entrar, aún hay un gordo calvo que sale.
Pero parece que busca algo en sus bolsillos y
a las trece y veinte menos diez segundos
vuelve a buscar sus miserables guantes.
Son las trece veinte.
Qué lento pasa el tiempo.
Parece que ya.
Todavía no.
Si, ahora.
Una bomba: la bomba explota.
* * *
Se você chegou até aqui, se gostou, se esses textos literários são úteis para você, por favor, faça uma doação. (Esses livros são muito caros!)
Minha página de mecenato é essa:
alexcastro.com.br
Meu PayPal é utilizado exclusivamente para comprar livros, pode doar por lá também:
paypal.me/alexcastroescritor
Wisława Szymborska
* * *
Poesia no Brasil
Ela tem dois livros de poesias publicados no Brasil, pela Companhia das Letras: "Poemas" (2011) e "Um amor feliz" (2016).
Como sempre, apesar de a editora ser ótima, o mercado editorial brasileiro está mal-servido.
Essas edições têm dois problemas: em primeiro lugar, do alto do meu total desconhecimento de polonês, não fiquei empolgado pelas traduções. Falta... vida? poesia?
Em segundo lugar, mais importante, são edições bilíngues. Eu me pergunto: por quê?
Edição bilíngue é algo que faz sentido quando são de línguas antigas que muitas pessoas ainda tentam aprender, como grego e latim, ou de línguas com muitas falantes entre nós, como inglês ou francês, mas qual o sentido de uma edição bilíngue português-polonês? Quantas, das pessoas que compraram esses livros, vão ler os poemas em polonês?
Na prática, a leitora brasileira paga caro por um livro grosso mas que, na prática, traz poucos poemas. Não vale a pena.
* * *
Poesia em inglês
Szymborska está melhor servida pela tradução de Clare Cavanaugh e Stanislaw Baranczak, belíssima, forte, poética, e vencedora do prêmio PEN de tradução.
Eu tenho dois volumes: "Poems, new and collected" (1998) e "Map, collected and last poems" (2016). Muitos poemas aparecem em ambos. Se for comprar só um, recomendo o último.
* * *
Poesia em espanhol
A tradução espanhola talvez seja ainda melhor, levada a cabo por dois autores que são não apenas poetas de mão cheia mas também especialistas em literatura polonesa: o mexicano Gerardo Beltrán e o espanhol Abel Murcia. (Tenho o volume "Poesía no completa", de 2002, da excelente editora mexicana Fondo de Cultura Economica.)
As línguas são tão parecidas que a excelência da tradução espanhola só ressalta tudo aquilo que a tradução portuguesa poderia ter sido... e não foi.
* * *
A prosa
Durante anos, Szymborska manteve duas colunas na imprensa polonesa. Uma se chamava "Leituras não-obrigatórias" e eram resenhar curtas e bem-humoradas dos livros recebidos pela redação. A outra, "Correio literária", se voltava para tirar dúvidas de jovens escritores.
É difícil dizer qual dessas colunas é a mais maravilhosa. Szymborska é tão, mas tão foda que ela é absorvente e envolvente comentando livros poloneses que ninguém nunca ouviu falar. E os conselhos para jovens escritores também conseguem, ao mesmo tempo, ser empáticos e sarcásticos, mordazes e carinhosos.
Nenhum livro coletando essas colunas jamais saiu no Brasil, mas essa matéria na Piauí do ano passado traz alguns "correios literários": piaui.folha.uol.com.br/materia/correi... (Só para assinantes, infelizmente.)
As "Leituras não-obrigatórias" foram coletadas em inglês no volume "Non-required reading" (2002), traduzido por Clare Cavanaugh, mas só está disponível em hardcover, pode sair caro e traz apenas 200 páginas de resenhas. Prefiro o "Prosas reunidas" (2017), da espanhola Malpaso, que traz 600 páginas de resenhas e é um mundo para se perder.
Já as colunas do Correio Literário, que eu tenha conseguido descobrir, não foram publicadas nem em inglês. Tenho uma edição recém-lançada (2018) da espanhola Nordica: "Correo Literario. O cómo llegar a ser (o no llegar a ser) escritor".
* * *
Compartilho com vocês quatro versões do poema que me fez cair de quatro por Szymborska.
(Aliás, esse poema foi postado nos comentários de algum post meu por uma santa pessoa leitora. Depois disso, saí atrás da autora. Muito obrigado a quem fez isso. O maior favor que alguém pode me fazer é me apresentar a uma grande autora.)
O terrorista, ele observa
(Tradução brasileira de Regina Przybycien)
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de entrar;
Alguns de sair.
O terrorista já passou para o outro lado da rua.
A distância o livra de todo mal
E a vista, bom, é como no cinema:
Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Uns jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,
E aquele mais alto entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.
Só que aquele ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Se foi tola de entrar ou não.
Vai se saber quando os carregarem para fora.
Treze e dezenove.
Parece que ninguém mais entra.
Aliás, um gordo careca sai.
Mas remexe os bolsos como se procurasse algo.
E às treze e vinte menos dez segundos
Ele volta para buscar a droga das luvas.
São treze e vinte.
O tempo, como ele se arrasta.
Deve ser agora.
Ainda não.
É agora.
A bomba, ela explode.
* * *
O terrorista… olha
(Tradução portuguesa de Júlio Sousa Gomes)
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A que distância ficará livre de perigo
e, quanto à vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode
* * *
The Terrorist, He's watching
(Tradução inglesa de Stanislaw Baranczak and Claire Cavanagh)
The bomb in the bar will explode at thirteen twenty.
Now it’s just thirteen sixteen.
There’s still time for some to go in,
and some to come out.
The terrorist has already crossed the street.
The distance keeps him out of danger,
and what a view – just like the movies:
A woman in a yellow jacket, she’s going in.
A man in dark glasses, he’s coming out.
Teen-agers in jeans, they’re talking.
Thirteen seventeen and four seconds.
The short one, he’s lucky, he’s getting on a scooter,
but the tall one, he’s going in.
Thirteen seventeen and forty seconds.
That girl, she’s walking along with a green ribbon in her hair.
But then a bus suddenly pulls in front of her.
Thirteen eighteen.
The girl’s gone.
Was she that dumb, did she go in or not,
we’ll see when they carry them out.
Thirteen nineteen.
Somehow no one’s going in.
Another guy, fat, bald, is leaving, though.
Wait a second, looks like he’s looking for something in his pockets and
at thirteen twenty minus ten seconds
he goes back in for his crummy gloves.
Thirteen twenty exactly.
This waiting, it’s taking forever.
Any second now.
No, not yet.
Yes, now.
The bomb, it explodes.
* * *
Un terrorista: él observa
(Tradução espanhola de Abel A. Murcia)
La bomba explotará en el bar a las trece veinte.
Ahora apenas son las trece y dieciséis.
Algunos todavía tendrán tiempo de salir.
Otros de entrar.
El terrorista ya se ha situado al otro lado de la calle.
Esta distancia lo protege de cualquier mal
y se ve como en el cine:
Una mujer con una cazadora amarilla: ella entra.
Un hombre de anteojos oscuros: él sale.
Unos chicos con vaqueros: ellos Hablan.
Trece diecisiete y cuatro segundos.
EL más bajo tiene suerte y sube a una moto,
el más alto entra.
Trece diecisiete y cuarenta segundos.
Una niña: ella camina con una cinta verde en pelo.
Sólo que de repente ese autobús la tapa.
Trece dieciocho.
Ya no está la niña.
Habrá sido tan tonta como para entrar, o no,
eso ya se verá cuando los vayan sacando.
Trece diecinueve.
Y ahora como que no entra nadie.
En vez de entrar, aún hay un gordo calvo que sale.
Pero parece que busca algo en sus bolsillos y
a las trece y veinte menos diez segundos
vuelve a buscar sus miserables guantes.
Son las trece veinte.
Qué lento pasa el tiempo.
Parece que ya.
Todavía no.
Si, ahora.
Una bomba: la bomba explota.
* * *
Se você chegou até aqui, se gostou, se esses textos literários são úteis para você, por favor, faça uma doação. (Esses livros são muito caros!)
Minha página de mecenato é essa:
alexcastro.com.br
Meu PayPal é utilizado exclusivamente para comprar livros, pode doar por lá também:
paypal.me/alexcastroescritor
Wisława Szymborska
Published on March 28, 2019 07:24
March 19, 2019
"Dos silêncios que me chamam
Por Rita Paschoalin
(Uma resenha de "Atenção.", de Alex Castro)
Foi quando li o último livro do Yuval Noah Harari no ano passado que considerei pela primeira vez a adoção da meditação em minha rotina. Nem nos anos de yoga, com alguns minutos dedicados a algo parecido em cada aula, cheguei a cogitar com seriedade a possibilidade. Tenho uma amiga que medita diariamente, e o pouco que já compartilhou comigo de sua experiência pessoal com a meditação me parece algo positivo. No livro do Harari, vi de forma mais elaborada e, digamos, didática os argumentos em prol das supostas benesses advindas do hábito de parar por alguns minutos diariamente para "simplesmente" prestar atenção à nossa respiração e tentar limpar nossa mente dos barulhos que produzimos e que nos cercam. Mesmo assim, não o fiz. O barulho segue adianto meu silêncio. Agora, mais uma vez, diante da angústia que tem me visitado a cada vez que leio os jornais, voltei a levar a sério a ideia de meditação como prática rotineira. Outras motivações também tornam a meditação algo simpático para mim, como a ideia de que, talvez, ao prestar atenção ao silêncio eu me torne capaz de lidar melhor com os ruídos - os emocionais, especialmente - e assim contribuir para que meus filhos também o façam.
Essa semana li o novo livro do Alex Castro, Atenção. - Por uma política do cuidado, que está sendo lançado pela Ed. Rocco. Alex, que pratica zen-budismo há anos, propõe uma abordagem radical: olhar para nosso meio social com atenção genuína, tentando nos esquivar de dogmas, julgamentos e de padrões de comportamento que nos aprisionam e que quase sempre nos impedem de ver o que deveria ser óbvio: nossa organização social é absurda. As práticas de Atenção sugeridas por Alex têm por finalidade o cuidado com o outro; portanto, o livro seria uma espécie de antítese da autoajuda, algo como um livro de "outroajuda": a atenção como caminho para o cuidado com o outro. Nada nas práticas descritas por Alex teria como objetivo tornar os leitores e leitoras pessoas melhores para elas próprias, mas pessoas mais habilitadas a realmente enxergar cada outra pessoa como alguém tão completo como nós mesmos geralmente nos enxergamos. Um desafio titânico, de fato. A prática de meditação como forma de reverter o que o mundo moderno faz de nós, contudo, muito me atrai. Muito provavelmente jamais atingirei os níveis de desapego e atenção genuína apontadas no livro, mas creio que o impossível pode mesmo ser um excelente guia.
Se Harari celebra a meditação como um meio de conhecermos um pouco melhor o funcionamento de nossas mentes e assim nos protegermos dos algoritmos que caminham a passos largos para decifrarem esse funcionamento antes de nós, Alex celebra a atenção genuína como ferramenta importante no cuidado com o outro, num exercício desafiador de redefinição do valor que damos a nossos egos. Em ambos os casos, olhar para dentro, ouvir o silêncio, prestar atenção à respiração são práticas apontadas como caminho para uma caminhada mais sã e carregada de sentido."
* * *
Muito obrigado, Rita.
Para saber mais sobre o livro e comprar:
alexcastro.com.br/atencao
Atenção.
(Uma resenha de "Atenção.", de Alex Castro)
Foi quando li o último livro do Yuval Noah Harari no ano passado que considerei pela primeira vez a adoção da meditação em minha rotina. Nem nos anos de yoga, com alguns minutos dedicados a algo parecido em cada aula, cheguei a cogitar com seriedade a possibilidade. Tenho uma amiga que medita diariamente, e o pouco que já compartilhou comigo de sua experiência pessoal com a meditação me parece algo positivo. No livro do Harari, vi de forma mais elaborada e, digamos, didática os argumentos em prol das supostas benesses advindas do hábito de parar por alguns minutos diariamente para "simplesmente" prestar atenção à nossa respiração e tentar limpar nossa mente dos barulhos que produzimos e que nos cercam. Mesmo assim, não o fiz. O barulho segue adianto meu silêncio. Agora, mais uma vez, diante da angústia que tem me visitado a cada vez que leio os jornais, voltei a levar a sério a ideia de meditação como prática rotineira. Outras motivações também tornam a meditação algo simpático para mim, como a ideia de que, talvez, ao prestar atenção ao silêncio eu me torne capaz de lidar melhor com os ruídos - os emocionais, especialmente - e assim contribuir para que meus filhos também o façam.
Essa semana li o novo livro do Alex Castro, Atenção. - Por uma política do cuidado, que está sendo lançado pela Ed. Rocco. Alex, que pratica zen-budismo há anos, propõe uma abordagem radical: olhar para nosso meio social com atenção genuína, tentando nos esquivar de dogmas, julgamentos e de padrões de comportamento que nos aprisionam e que quase sempre nos impedem de ver o que deveria ser óbvio: nossa organização social é absurda. As práticas de Atenção sugeridas por Alex têm por finalidade o cuidado com o outro; portanto, o livro seria uma espécie de antítese da autoajuda, algo como um livro de "outroajuda": a atenção como caminho para o cuidado com o outro. Nada nas práticas descritas por Alex teria como objetivo tornar os leitores e leitoras pessoas melhores para elas próprias, mas pessoas mais habilitadas a realmente enxergar cada outra pessoa como alguém tão completo como nós mesmos geralmente nos enxergamos. Um desafio titânico, de fato. A prática de meditação como forma de reverter o que o mundo moderno faz de nós, contudo, muito me atrai. Muito provavelmente jamais atingirei os níveis de desapego e atenção genuína apontadas no livro, mas creio que o impossível pode mesmo ser um excelente guia.
Se Harari celebra a meditação como um meio de conhecermos um pouco melhor o funcionamento de nossas mentes e assim nos protegermos dos algoritmos que caminham a passos largos para decifrarem esse funcionamento antes de nós, Alex celebra a atenção genuína como ferramenta importante no cuidado com o outro, num exercício desafiador de redefinição do valor que damos a nossos egos. Em ambos os casos, olhar para dentro, ouvir o silêncio, prestar atenção à respiração são práticas apontadas como caminho para uma caminhada mais sã e carregada de sentido."
* * *
Muito obrigado, Rita.
Para saber mais sobre o livro e comprar:
alexcastro.com.br/atencao
Atenção.

Published on March 19, 2019 12:46
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