Cinco ou seis coisas que eu aprendi com o Joca — e outras que aprendi escrevendo –
por Marcílio Godoi
(Ao amigo Joca Reiners Terron)
Que na escrita os problemas são um conforto, e que as certezas simplificam perigosamente as coisas;
Que alguns filósofos sofrem de perda de problemas, e que outros padecem de excessivo ganho de poesia;
Que as áreas de sombras também são boas de se enxergar, e que sob a neblina é que se encontram os melhores poemas;
Que nós desprezamos muito o valor estilístico de nossos defeitos, e que grandiosas obras decorrem de uma obsessão doentia;
Que toda arte começa a partir de um erro, e que é preciso falhar sempre, cada vez melhor;
Que o monólogo interior, indireto, livre, é um jeito de não se deixar colonizar, e que escrever é um modo de forçar a liberdade que há em não saber;
Que não ter nada a pintar e nada com que pintar pode ser o desejo, e que escrever sem literatura pode ser uma elevada forma de arte;
Que um poema é um objeto no mundo procurando seu lugar, e que pressionar a linguagem pode resultar apenas em publicidade;
Que os heróis perseguem honra, glória e pátria, mas sempre alcançam tragédias, e que palavras perdendo sentido podem ser um sinal de começo;
Que a linguagem é um campo de batalha com acelerador de partículas,e que é preciso entender o ritmo da pergunta, mais do que a resposta;
Que são nossas limitações que nos autorizam a falar, e que é preciso não desperdiçar muito tempo com o que já foi dito;
Que alguns escritores propõem enigmas e te dão a chave, e que outros propõem também, mas jogam a chave fora e ainda se riem de nosso desespero;
Que o cinema e o teatro meditam sobre o instante de agora-agora, mas que a literatura, mesmo quando fala do futuro, parece falar de ontem;
Que parar pra revisar interrompe o fluxo da nossa ideia, e que isso pode fazer a gente esquecer do que escrevia;
Que o romance nasceu como uma pretensão burguesa de reproduzir o mundo, e que um verdadeiro autor só pode estar a serviço de si mesmo, de mais ninguém;
Que autonomia é rompimento, ruptura, insubordinação, e que o leitor responde pela existência da metade do que vai escrito;
Que toda vez que na escrita somamos um adjetivo a substantivo, a chance de produzirmos um clichê é de quase cem por cento;
Que é preciso saber exatamente onde fica no texto “aquele agora de então”, e que devaneios oníricos se desdobram onde a realidade não tem plano;
Que é preciso derrubar o paradigma da verossimilhança, e que o excesso de fatos podem diametralmente derrubar nossa imaginação;
Que é preciso se desapegar de toda e qualquer pesquisa feita, e que romance nenhum é uma tese;
Que quando a personagem dorme e sonha, o leitor aproveita esse momento para abandonar o livro, e que um autor só tem o direito de usar um ponto de exclamação a cada 300 páginas;
Que a mancha gráfica do texto é parte da sua leitura, e que “voz” nunca é o escritor falando;
Que é preciso escrever sem superego, sem juiz, sem cabresto,e que temos de revisar nosso texto como nosso maior inimigo faria. Pois ele o fará;
Que toda literatura tem de aspirar a uma linguagem cósmica, e que mesmo que estejamos falando sobre as formigas, há de haver ali uma formigonia;
Que o tempo é uma fantasia artificial que nos ensinaram, e que isso nos afastou por completo do nosso diálogo com a natureza;
Que a emoção é tudo que dá a consciência do espaço, da memória, das relações, e que a única forma de lidar com o tempo é através do sentimento;
Que os diálogos existem para dizer aquilo que não fica tão bem um narrador dizer, e que é preciso plantar sempre uma forma de angústia no leitor;
Que o assassino tem de ser uma personagem importante, senão o leitor vai se sentir traído, e que metade da arte narrativa está em não explicar nada;
Que não contar uma história especificamente pode ser uma ótima forma de contar uma história, e que ser econômico verbalmente e contido psicologicamente pode ser grandioso;
Que narrar o sexo de uma maneira abstrata sempre perde para o hiperclose, e que quando amantes se conhecem de verdade, uma língua particular ali se funda;
Que quem escreve um poema só o faz porque não consegue ficar em silêncio, e que o romance é uma forma estilística omnívora, ou seja, um bicho que come de tudo;
Não relate o seu café da manhã se você não se chamar Marcel Proust.
Não arremede a fala do povo se seu nome não for João Guimarães Rosa.
[ Marcílio Godoi, excelente escritor que está prestes a estrear como romancista, foi meu aluno, e escreveu esse belo poema a partir de suas notas feitas ao longo das aulas. ]
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